Quando eu era pequena

Quando eu era pequena, decidi que seria escritora. Não tinha bem certeza do que isso queria dizer, mas era fiel ao meu caderno da loja de R$1,99 e às canetas de gel que eu comprava para o início do ano letivo.

Percebi muito cedo que poderia criar universos infinitamente mais divertidos do que este daqui.  Compreendi, com a ajuda dos meus pais e avós, que palavras não eram “apenas” palavras, e que uma vez que elas saíssem da boca, nada as trariam de volta, e poucas coisas poderiam amenizar a dor de uma palavra que machuca.

Com bastante frequência, costumo contar histórias que começam com essas palavras: “quando eu era pequena”. Já me acusaram até mesmo de ser uma acumuladora de memórias e confesso que não pude discordar. Coleciono-as, guardo-as em caixas velhas de presentes, encho gavetas com elas, e escolho as que mais tocam meu coração para andarem comigo no meu bolso da frente. Volta e meia, encontro uma pausa nos diálogos com amigos e preencho com alguma dessas memórias—mas somente se julgo relevante no momento.

A  verdade é que não sei viver sem contar histórias. Entendo a vida como um enorme e interminável livro, daqueles que você quer muito ler, a trama é original e envolvente e você não quer termina-lo. Não exatamente. Você quer espiar o que a última página reserva mas sem que isso influencie a forma como você irá ler o resto do livro. Sem que isso pese em seus julgamentos dos personagens de alguma forma.

Claro, a diferença é que a página final de um livro existe, é palpável, você pode inclusive sentir o cheiro dela—aquele cheiro que escritor ama—e quando termina, você fecha o livro, talvez de maneira sentimental abrace-o com força rente ao peito como se a história fosse durar um pouco mais se você segurasse firme.

Na vida, não podemos espiar a última página. Podemos ler e reler várias delas, mas também não podemos viver o que já vivemos, não da mesma forma.

Por isso me agarro às memórias que tenho, e, para minha sorte, o meu ramo é os das memórias colecionáveis, das histórias que precisam ser compartilhadas.

Escritores trabalham com saudade. Não senti-la torna tudo muito mais difícil.

Quando eu era pequena, criei um mundo ao meu redor e venho vivendo nele desde então. Nunca tenho certeza se o que vivo é realidade ou ficção, mas raramente deixo que isso me incomode.

Agora, que já não sou mais pequena, torço para que o que me fez ser quem sou, não desapareça—por isso cuido, como quem cuida de livros para não mofarem—e carrego comigo uma caneta tinteiro que mancha minhas mãos de tinta preta. Assim, quem sabe, eu não esqueça de nada.

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Never dull.